> "incontacto"

   Fechei a porta do apartamento. Ao descer as escadas do prédio, a chuva abundante que ouvia cair lá fora fez-me abrandar o passo. Saí, aguardei um pouco debaixo da entrada à espera que o aguaceiro abrandasse – eram duas da manhã. A água que caía e os candeeiros que iluminavam a rua pintavam o jardim da praça, a cores de ouro e prata. Com o olhar perdido nesses pequenos pontos brilhantes, ainda abrigado, retirei da mala o pacote do tabaco, um filtro e uma mortalha. Enrolado o cigarro, procurei pelo isqueiro no bolso interior do sobretudo. Ao acendê-lo, o calor da chama que senti no nariz trouxe-me um pouco de conforto. Aguardei mais um pouco, o tempo suficiente para terminar de fumar. Por momentos hesitei, tive vontade de voltar para dentro assim que acabasse o cigarro. Tentei ganhar coragem, ajeitei o cachecol que trazia ao pescoço, enrolei-o de forma a cobrir a maior parte possível do rosto criando um resguardo para que a respiração me aquecesse a zona protegida. Dei dois passos em frente e senti de imediato a chuva fria.
   Caminhava pela calçada evitando as poças de água por baixo dos meus pés e os pingos mais grossos que caíam dos telhados. As gotas de chuva misturavam-se com as do meu rosto, misturadas escorriam até aos meus lábios deixando neles um travo amargo. A roupa ensopava rapidamente. Ao fim de quinze minutos o frio, a noite escura, o corpo completamente molhado, e o desespero que tudo isso me causava, deixaram-me num estado de transe. Despi-me enquanto caminhava, livrei-me da roupa que, ensopada, me limitava cada vez mais o movimento. Minutos depois, completamente nu, olhei para o céu, através do luar percebi que estava limpo, que a chuva tinha parado sem que eu tivesse dado conta. Olhei para trás e percebi, assustado, que os prédios tinham desaparecido. Olhei para o lado, a estrada e os carros estacionados, que minutos antes seguiam a meu lado, já não estavam lá. O passeio da calçada desapareceu. Percebi que começava a cair vertiginosamente, sem controlo. Queda de um lugar que um instante antes se perdeu para sempre. Nela perdi também a memória do meu passado.
   Acordei aliviado quando percebi que tocava na almofada, quando senti o calor dos lençóis em contacto com o meu corpo. Levantei-me da cama, calcei os chinelos e vesti o pijama. Dirigi-me à cozinha, liguei a máquina de café e, enquanto esperava que este ficasse pronto, enrolei um cigarro. Peguei na chávena e no cigarro e fui até à janela da varanda. Abri a persiana, os prédios tinham desaparecido… Percebi que não era um sonho, perdera o contacto com a minha vida passada.

> Contacto

   Das varandas em frente no outro lado da rua, cruzam olhares comigo. Apenas a uns metros de distância, olho para essas pessoas todos os dias como se vivessem na outra ponta do mundo. Preito à indiferença aprendida por elas e por mim. Tenho vontade de tocar essas vidas: as que acabaram de abrir a janela e as que já foram para dentro; as que descem a caminho do trabalho e as que estão de regresso. Sussurrar-lhes um gesto ao ouvido e despertá-las para me imaginar acordado. Tocá-las para me sentir em contacto.