> Beijo

Amar um murmúrio do vento e uma última brisa nos lábios. O primeiro brilho nos olhos e o apagar da luz. A última recaída do corpo e o levantar do chão. Amarrar o desejo no vaivém de uma turbulenta insatisfação. Apertá-lo contra o peito! Enfraquecê-lo... Até que dele não reste nada mais do que o conforto de uma mão, abandonada, repousando no ventre. Amar em frente, sem condição ou horizonte. Apenas ao sabor da corrente desse último sopro.... desse último beijo.

> Reflexo

   Encontro uma ruga e dois ou três cabelos brancos. O espelho com trinta e cinco anos de idade provoca alucinações como esta, apago a luz para esquecê-la.
   Saio de casa. Desço as escadas do prédio: três pisos a correr em direcção à luz. No passeio da calçada tropeço numa bola que passa por mim e no puto que corre atrás dela. Recordo-me do passado: eu, de calções rotos, de pingo no nariz, a fintar poças de água. O miúdo olha para mim: "Bom dia senhor, desculpe!", a sua voz tocou-me nos cabelos, os brancos, acariciou-me as rugas e levou-me de volta ao espelho.
   Volto para casa a correr, vou até ao quarto e, num álbum de fotos antigas perdido no fundo do armário, procuro uma foto, uma em particular: eu de calções com uma bola debaixo do braço. Pego na foto, vou até à casa-de-banho e colo essa imagem no espelho. Olho uma última vez para o meu reflexo e nele vejo um puto com um ar reguila, de pingo no nariz: "bom dia senhor...".

> A "caixa"

   Ainda rapazito novo, o Serafim abandonou a sua ilha. Um lugar misterioso e sagrado que construiu para resguardar as imagens da sua infância, para abrigar a sua inocência. Partiu de braços cruzados. Entregou essa terra ao abandono e regressou à pátria dos sonhos adultos.
   Deste lado de cá, onde decidiu ficar, o Serafim comprou, entre muitas outras coisas úteis, uma televisão. Através dela, assistia diariamente a fantasias mirabolantes, ora repletas de felicidade, ora fartas de miséria. O homem não percebe nada de tecnologia: no final do dia desliga o aparelho e vai dormir descansado, a vida que conhece não cabe nessa caixa, é impossível. Ganhou o hábito de premir um botão e, no “gosto, não gosto” da sua determinação, decidir o rumo da vida, a cá de dentro e a lá de fora, com esse simples gesto.
Vivia em paz com a sua doutrina caseira, com as suas escolhas, as suas prioridades. Um dia, um amigo chamou-lhe a atenção: “Já viste isto?!”, o Serafim abriu os olhos, como nunca o fizera, e desligou o televisor. Saiu porta fora, um arrepio fê-lo verter uma lágrima… duas… três… muitas... Compreendeu que a consistência da sua ilha era assombrosamente ilusória, que a ingenuidade das suas utopias morreram nesse preciso momento.
   Hoje sabe que são grandes demais, tanto o amor como o ódio, para caberem dentro dessa “caixinha”. Sempre que abre a janela, lembra-se que essas imagens que viu hão-de pertencer a alguma pessoa, algures por aí. Olha para o horizonte e imagina que, coladas à desgraça de alguém, elas lá estão, mas que o amor existe também nelas, nessas imagens verdadeiras.
   O homem nunca percebeu nada de tecnologia por isso, hoje em dia, não liga a televisão, sai para a rua… Bom dia Serafim!

> Na outra ponta

   Vivo os dias, os que ainda me restam, a fugir desses lugares desencantados povoados de bonecos de cera, uns engravatados, outros de salto alto. A defender-me dessas feras de garras mansas, carcomidas de tanto chafurdar na bajulice e na vaidade. Desvio o olhar dos brilhos que ostentam nas lantejoulas, nos botões de punho. Faço fogueiras, chamas carrascas dos seus manuais de boas maneiras. Estendo-lhes a mão e, em troca de meia dúzia de tostões, vendo-lhes um alívio efémero. 
   Feita a troca faço-me à estrada e, sem que ninguém perceba, regresso à transparência e torno-me invisível aos olhos dessa gente "resplandecente". Corpos de cera que não passam de sombras, que a caminho de casa passam pelo solário, enquanto eu caminho para o sol. Que rodam a chave para entrar em casa, enquanto eu não tenho chave, nem a minha porta tem número, nem a minha casa tem porta. E enquanto abrem a torneira para lavar a imundíce da sua indiferença, eu olho para cima... o meu chuveiro é o céu, sou livre, não sou um boneco de cera!