> Prelúdio de um Dó menor

   A nota que falta detém-me o suficiente para cair, suspenso, num compasso fora de tempo. No som de retorno, repleto de pausas, imagino um burburinho de reflexões onde o que ouço se funde com o que sinto. Aguardo calmamente pelo tom inicial e nele encontro a pauta da primeira música que escrevi.
   Em contacto… Livre… Indiferente ao ruído… Seguro do ritmo… Atento aos sentidos fico à espera de uma voz e, finalmente, percebo a dissonância de um “não”…

> Shhh...

   Fecha os olhos, escuta. Antes, olha para mim e diz-me se sentes o que ouço, porque olho para ti e não ouço o que sentes. E assim, abraçados mas distantes, viveremos na impossibilidade um do outro, porque estás aí e eu aqui. Sei, e tu também, que nunca estivemos juntos, porque quando olho para a tua face vejo apenas o que está para lá, para lá do que nunca conseguirás ver, e o mesmo vês tu de mim. E quando o sol bate de frente, me aquece o rosto, quando cerro os olhos e sinto o calor do teu abraço, a única coisa que vês é uma sombra, a nossa. E nos braços um do outro nunca olharemos para as mesmas coisas da mesma forma, com o mesmo amor. E abraçados não poderíamos estar mais longe um do outro: eu contra o sol, tu na sombra.
   Fechas os olhos, escutas... Porque apenas de olhos fechados somos um só.

> Beijo

Amar um murmúrio do vento e uma última brisa nos lábios. O primeiro brilho nos olhos e o apagar da luz. A última recaída do corpo e o levantar do chão. Amarrar o desejo no vaivém de uma turbulenta insatisfação. Apertá-lo contra o peito! Enfraquecê-lo... Até que dele não reste nada mais do que o conforto de uma mão, abandonada, repousando no ventre. Amar em frente, sem condição ou horizonte. Apenas ao sabor da corrente desse último sopro.... desse último beijo.

> Reflexo

   Encontro uma ruga e dois ou três cabelos brancos. O espelho com trinta e cinco anos de idade provoca alucinações como esta, apago a luz para esquecê-la.
   Saio de casa. Desço as escadas do prédio: três pisos a correr em direcção à luz. No passeio da calçada tropeço numa bola que passa por mim e no puto que corre atrás dela. Recordo-me do passado: eu, de calções rotos, de pingo no nariz, a fintar poças de água. O miúdo olha para mim: "Bom dia senhor, desculpe!", a sua voz tocou-me nos cabelos, os brancos, acariciou-me as rugas e levou-me de volta ao espelho.
   Volto para casa a correr, vou até ao quarto e, num álbum de fotos antigas perdido no fundo do armário, procuro uma foto, uma em particular: eu de calções com uma bola debaixo do braço. Pego na foto, vou até à casa-de-banho e colo essa imagem no espelho. Olho uma última vez para o meu reflexo e nele vejo um puto com um ar reguila, de pingo no nariz: "bom dia senhor...".

> A "caixa"

   Ainda rapazito novo, o Serafim abandonou a sua ilha. Um lugar misterioso e sagrado que construiu para resguardar as imagens da sua infância, para abrigar a sua inocência. Partiu de braços cruzados. Entregou essa terra ao abandono e regressou à pátria dos sonhos adultos.
   Deste lado de cá, onde decidiu ficar, o Serafim comprou, entre muitas outras coisas úteis, uma televisão. Através dela, assistia diariamente a fantasias mirabolantes, ora repletas de felicidade, ora fartas de miséria. O homem não percebe nada de tecnologia: no final do dia desliga o aparelho e vai dormir descansado, a vida que conhece não cabe nessa caixa, é impossível. Ganhou o hábito de premir um botão e, no “gosto, não gosto” da sua determinação, decidir o rumo da vida, a cá de dentro e a lá de fora, com esse simples gesto.
Vivia em paz com a sua doutrina caseira, com as suas escolhas, as suas prioridades. Um dia, um amigo chamou-lhe a atenção: “Já viste isto?!”, o Serafim abriu os olhos, como nunca o fizera, e desligou o televisor. Saiu porta fora, um arrepio fê-lo verter uma lágrima… duas… três… muitas... Compreendeu que a consistência da sua ilha era assombrosamente ilusória, que a ingenuidade das suas utopias morreram nesse preciso momento.
   Hoje sabe que são grandes demais, tanto o amor como o ódio, para caberem dentro dessa “caixinha”. Sempre que abre a janela, lembra-se que essas imagens que viu hão-de pertencer a alguma pessoa, algures por aí. Olha para o horizonte e imagina que, coladas à desgraça de alguém, elas lá estão, mas que o amor existe também nelas, nessas imagens verdadeiras.
   O homem nunca percebeu nada de tecnologia por isso, hoje em dia, não liga a televisão, sai para a rua… Bom dia Serafim!

> Na outra ponta

   Vivo os dias, os que ainda me restam, a fugir desses lugares desencantados povoados de bonecos de cera, uns engravatados, outros de salto alto. A defender-me dessas feras de garras mansas, carcomidas de tanto chafurdar na bajulice e na vaidade. Desvio o olhar dos brilhos que ostentam nas lantejoulas, nos botões de punho. Faço fogueiras, chamas carrascas dos seus manuais de boas maneiras. Estendo-lhes a mão e, em troca de meia dúzia de tostões, vendo-lhes um alívio efémero. 
   Feita a troca faço-me à estrada e, sem que ninguém perceba, regresso à transparência e torno-me invisível aos olhos dessa gente "resplandecente". Corpos de cera que não passam de sombras, que a caminho de casa passam pelo solário, enquanto eu caminho para o sol. Que rodam a chave para entrar em casa, enquanto eu não tenho chave, nem a minha porta tem número, nem a minha casa tem porta. E enquanto abrem a torneira para lavar a imundíce da sua indiferença, eu olho para cima... o meu chuveiro é o céu, sou livre, não sou um boneco de cera!

> Discos "perdidos"

   Pegou no CD comprado três anos antes, olhou para a capa e percebeu que esse disco que escutou várias vezes, durante esse tempo, nunca existiu. Essas notas que ouviu ficaram suspensas nesse espaço vazio que foi a sua vida. De repente a sua verdade era apenas um sonho, uma realidade aparentemente instruída, decididamente falsa. Acordou desse sonho e de repente deixou de existir. 
   Nessa noite perdeu a vontade de ouvir música. Agarrou nos discos que ouviu nos últimos anos e arrumou-os no fundo do baú, com eles arrumou também os livros e os sonhos que neles lera. Fechou nessa caixa o passado que nunca existiu: o seu.

> Olhar cheio de nada

   Olhei para dentro das pessoas, de uma meia dúzia que caminhava a meu lado na rua. Vi apenas algumas sombras de uma vida encarcerada, de uma insónia que condenou o sonho ao esquecimento. Passei por elas, por dentro delas, e senti um vazio: olhei e não as vi. Haviam-se perdido há muito: elas e as ilusões - as delas e também as minhas. Perdi-me eu... e elas também.

> "Lembras-te da última partida de sueca que jogámos?"

   Recordo que quase todos partiam para outras bandas nos meses frios do Inverno. Quando era puto não dava grande importância ao caso. Para mim era óbvio: a morte é uma coisa triste e nada mais indicado do que um dia de chuva para cobrir essa tristeza, para confundir essas lágrimas, as que correram e as que ficaram por cair.
  Hoje, pergunto-me se era o frio que lhes soprava a alma para longe do corpo engelhado ou um outro incómodo qualquer. Talvez fosse um frio diferente, apenas, que se entranhava um pouco mais para dentro da pele, mais perto do coração do que dos ossos. Apesar de tudo morriam quase sempre rodeados de rostos familiares, gente que partilhava essa última tristeza num gesto de homenagem, oferecendo o melhor que há para dar a um moribundo: companhia. Lá fora chove outra vez… eles, os velhos da minha aldeia, já partiram.

> Para ti

   Espero num gesto teu apenas, a razão de uma morte suave e desatenta... a teus pés. Libertar nos meus lábios um só murmúrio, que quero soprar perto do teu ouvido, ou um pouco mais abaixo. Indefeso, entrar em ti suavemente, num pensamento teu, um só que seja e tocá-lo, para voltar a esse momento que me deixou a flutuar desarmado, ao sabor da tua vontade. Separado entre dois mundos: num em que estás perto, mas não tanto quanto desejo; num outro em que arrisco tudo e te chamo com um gesto, mas que ao desviares o olhar, temo perder para sempre. Apenas espero não me render, e não ter pela metade tudo o que desejo teu.

> A gota púrpura

   Um rasgo na pele ou apenas um traço no destino. Uma lâmina que desce pelo peito despido. Num grito sufocado escorre por entre dedos trémulos, a vida, púrpura e morna. Nas gotas que caem pelo chão escoam-se as verdades aparentes e aprendidas, a realidade e os sonhos, a paixão e o desalento, o delito e a sentença. E num instante, o último, tudo faz sentido de novo, se transforma e renova. O regresso dos sentidos pela purificação da inocência, adormecida, finalmente resgatada do corpo.

> Que frases?

   Na lápide do meu passado jazem cravados dois poemas. Ligeiramente esvanecidas, pela chuva encerrada nas lágrimas, pelo vento crescente nos imensos silêncios, pelo frio dos desafectos, pela tempestuosa caminhada, permanecem estas pequenas frases - grandiosas, delicadas, doces e ternas, intangíveis - para sempre… de dois poemas.

> Não te ouço!

   Sonho... Se algum dia te encontrares a meu lado, e eu perdido, lembra-te: posso estar ligeiramente adormecido. Olha bem para mim, grita-me ao ouvido a paixão que nos uniu. Até que fique surdo, até que esse grito de revolta penetre no meu sono profundo, me desperte do tédio dos dias, me rasgue a pele endurecida pela inércia, e ecoe pelo vôo dos sonhos. Bem alto, rasga o espaço e o tempo que nos afastou, com esse grito! E quando este se tornar mudo ao perder a força que o sustém, sussurra-me apenas, perto do meu peito, essa doce dor que nos uniu. Para que acorde, volte para ti… Para que voltemos a voar, os dois, no mesmo sonho em que nos encontrámos um dia.

> "incontacto"

   Fechei a porta do apartamento. Ao descer as escadas do prédio, a chuva abundante que ouvia cair lá fora fez-me abrandar o passo. Saí, aguardei um pouco debaixo da entrada à espera que o aguaceiro abrandasse – eram duas da manhã. A água que caía e os candeeiros que iluminavam a rua pintavam o jardim da praça, a cores de ouro e prata. Com o olhar perdido nesses pequenos pontos brilhantes, ainda abrigado, retirei da mala o pacote do tabaco, um filtro e uma mortalha. Enrolado o cigarro, procurei pelo isqueiro no bolso interior do sobretudo. Ao acendê-lo, o calor da chama que senti no nariz trouxe-me um pouco de conforto. Aguardei mais um pouco, o tempo suficiente para terminar de fumar. Por momentos hesitei, tive vontade de voltar para dentro assim que acabasse o cigarro. Tentei ganhar coragem, ajeitei o cachecol que trazia ao pescoço, enrolei-o de forma a cobrir a maior parte possível do rosto criando um resguardo para que a respiração me aquecesse a zona protegida. Dei dois passos em frente e senti de imediato a chuva fria.
   Caminhava pela calçada evitando as poças de água por baixo dos meus pés e os pingos mais grossos que caíam dos telhados. As gotas de chuva misturavam-se com as do meu rosto, misturadas escorriam até aos meus lábios deixando neles um travo amargo. A roupa ensopava rapidamente. Ao fim de quinze minutos o frio, a noite escura, o corpo completamente molhado, e o desespero que tudo isso me causava, deixaram-me num estado de transe. Despi-me enquanto caminhava, livrei-me da roupa que, ensopada, me limitava cada vez mais o movimento. Minutos depois, completamente nu, olhei para o céu, através do luar percebi que estava limpo, que a chuva tinha parado sem que eu tivesse dado conta. Olhei para trás e percebi, assustado, que os prédios tinham desaparecido. Olhei para o lado, a estrada e os carros estacionados, que minutos antes seguiam a meu lado, já não estavam lá. O passeio da calçada desapareceu. Percebi que começava a cair vertiginosamente, sem controlo. Queda de um lugar que um instante antes se perdeu para sempre. Nela perdi também a memória do meu passado.
   Acordei aliviado quando percebi que tocava na almofada, quando senti o calor dos lençóis em contacto com o meu corpo. Levantei-me da cama, calcei os chinelos e vesti o pijama. Dirigi-me à cozinha, liguei a máquina de café e, enquanto esperava que este ficasse pronto, enrolei um cigarro. Peguei na chávena e no cigarro e fui até à janela da varanda. Abri a persiana, os prédios tinham desaparecido… Percebi que não era um sonho, perdera o contacto com a minha vida passada.

> Contacto

   Das varandas em frente no outro lado da rua, cruzam olhares comigo. Apenas a uns metros de distância, olho para essas pessoas todos os dias como se vivessem na outra ponta do mundo. Preito à indiferença aprendida por elas e por mim. Tenho vontade de tocar essas vidas: as que acabaram de abrir a janela e as que já foram para dentro; as que descem a caminho do trabalho e as que estão de regresso. Sussurrar-lhes um gesto ao ouvido e despertá-las para me imaginar acordado. Tocá-las para me sentir em contacto.