> A "caixa"

   Ainda rapazito novo, o Serafim abandonou a sua ilha. Um lugar misterioso e sagrado que construiu para resguardar as imagens da sua infância, para abrigar a sua inocência. Partiu de braços cruzados. Entregou essa terra ao abandono e regressou à pátria dos sonhos adultos.
   Deste lado de cá, onde decidiu ficar, o Serafim comprou, entre muitas outras coisas úteis, uma televisão. Através dela, assistia diariamente a fantasias mirabolantes, ora repletas de felicidade, ora fartas de miséria. O homem não percebe nada de tecnologia: no final do dia desliga o aparelho e vai dormir descansado, a vida que conhece não cabe nessa caixa, é impossível. Ganhou o hábito de premir um botão e, no “gosto, não gosto” da sua determinação, decidir o rumo da vida, a cá de dentro e a lá de fora, com esse simples gesto.
Vivia em paz com a sua doutrina caseira, com as suas escolhas, as suas prioridades. Um dia, um amigo chamou-lhe a atenção: “Já viste isto?!”, o Serafim abriu os olhos, como nunca o fizera, e desligou o televisor. Saiu porta fora, um arrepio fê-lo verter uma lágrima… duas… três… muitas... Compreendeu que a consistência da sua ilha era assombrosamente ilusória, que a ingenuidade das suas utopias morreram nesse preciso momento.
   Hoje sabe que são grandes demais, tanto o amor como o ódio, para caberem dentro dessa “caixinha”. Sempre que abre a janela, lembra-se que essas imagens que viu hão-de pertencer a alguma pessoa, algures por aí. Olha para o horizonte e imagina que, coladas à desgraça de alguém, elas lá estão, mas que o amor existe também nelas, nessas imagens verdadeiras.
   O homem nunca percebeu nada de tecnologia por isso, hoje em dia, não liga a televisão, sai para a rua… Bom dia Serafim!

1 comentário:

  1. Este texto daria para continuar ou terminar exactamente assim, como um breve conto... Adoraria ter lido isto numa coluna de um qualquer jornal nacional ou no 1.º capítulo de um romance, tal como adorei lê-lo aqui. Mas, na verdade, o sentido ou sentidos escondidos por detrás do teu texto talvez não queiram ficar confinados a um limite físico espacial, a uma simples mancha de caracteres... o eterno dilema: a escrita liberta ou confina? :S

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