> Na outra ponta

   Vivo os dias, os que ainda me restam, a fugir desses lugares desencantados povoados de bonecos de cera, uns engravatados, outros de salto alto. A defender-me dessas feras de garras mansas, carcomidas de tanto chafurdar na bajulice e na vaidade. Desvio o olhar dos brilhos que ostentam nas lantejoulas, nos botões de punho. Faço fogueiras, chamas carrascas dos seus manuais de boas maneiras. Estendo-lhes a mão e, em troca de meia dúzia de tostões, vendo-lhes um alívio efémero. 
   Feita a troca faço-me à estrada e, sem que ninguém perceba, regresso à transparência e torno-me invisível aos olhos dessa gente "resplandecente". Corpos de cera que não passam de sombras, que a caminho de casa passam pelo solário, enquanto eu caminho para o sol. Que rodam a chave para entrar em casa, enquanto eu não tenho chave, nem a minha porta tem número, nem a minha casa tem porta. E enquanto abrem a torneira para lavar a imundíce da sua indiferença, eu olho para cima... o meu chuveiro é o céu, sou livre, não sou um boneco de cera!

2 comentários:

  1. E é a certeza do que não somos ou do que não queremos ser que nos faz olhar para as coisas mais importantes na vida, por mais simples que sejam. Porque esse sol e esse céu é de todos... melhor, dos que percebem que tudo o mais é de cera... Abraço, Amigo.

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  2. Adorei:)

    O que escreves revela uma aptidão natural para a escrita.
    Cem anos que eu escreva,nunca vou escrever como tu.
    Arrumo aqui o teclado,lol, vou dedicar-me à pesca.
    És genial...Mesmo!(susy)

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